A imagem acima mostra uma casa. Uma casa que abriga cerca de
7 bilhões de seres humanos e uma infinidade de outros seres vivos, bem mais
numerosos do que nós. Uma casa que só é vista de fora por alguns de seus
moradores e por satélites como os que fizeram a imagem acima. Observar essa
imagem é como mergulhar em uma vastidão de pensamentos e reflexões. Sobre a
superfície desta casa celeste, atraídas pela força gravitacional, diversas
formas de vida compartilham um espaço precioso. Embora vivam no mesmo mundo, as
inúmeras espécies vivem em mundos diferentes. Talvez a frase anterior soe
incoerente, ou pareça uma antítese sem fundamento, mas é totalmente plausível
quando consideramos que cada uma das espécies percebe o mundo de maneira
distinta. Você, um indivíduo saudável pertencente à espécie Homo sapiens, dispõe de uma maquinaria
sensitiva incrível composta por visão, audição, paladar, olfato e somestesia.
Esta última inclui o sentido do tato, a propriocepção (sua percepção no
espaço), percepção de dor e de temperatura. A palavra-chave aqui é “percepção”,
e precisamos entendê-la para prosseguir. Nossos órgãos sensoriais detectam os estímulos
do ambiente, e chamamos isso de sensação.
Já a percepção consiste na interpretação
a nível cortical desse estímulo sensorial que foi detectado pelo órgão em
questão. Podemos tomar como exemplo a visão. Feixes de luz incidem sobre o olho
e sofrem refração através do conjunto de lentes convergentes do globo ocular, a
córnea e o cristalino. Essa chegada de luz ao órgão da visão é a sensação. No
“fundo do olho”, isto é, na retina, há células fotorreceptoras, que recebem os
estímulos luminosos e os convertem em impulsos elétricos que serão propagados,
através do nervo óptico, ao córtex visual. É no córtex que a percepção acontece. Dessa
forma, podemos dizer que o olho nada enxerga, e sim o cérebro, que interpreta
as informações vindas através da luz. O olho, sozinho, não é capaz de fazer com
que um ser vivo veja o mundo. É por esse motivo que não é possível saber com
precisão a forma como as outras espécies enxergam o ambiente que as cercam,
visto que o estudo cerebral de seres incapazes de se expressar por meio da fala
é muito limitado. Dei esse exemplo para termos em mente o conceito de
“sensação” e de “percepção”. Cada órgão sensorial é uma porta para infinitos
estímulos, que são percebidos de maneira distinta por cada espécie, e me
arrisco a dizer que essa diferença se aplique também a cada indivíduo de uma
mesma espécie. Nós, humanos, temos como
sentido predominante a visão. Somos seres visuais. Mas, mesmo assim, somos limitados
quanto ao comprimento de onda que podemos enxergar, que varia entre 400 e
700nm. Há de se concordar que espécies capazes de ultrapassar tais comprimentos
de onda percebam o mundo de maneira diferente da nossa. Agora, tendo em vista
essa discrepância de percepções, considere, além da visão, todos os outros
sentidos que citei. Pensando desta forma, a proposição de que o planeta mostrado
acima é o mesmo para todos, mas ao mesmo tempo diferente, torna-se consistente
e verdadeira. Nem todas as espécies dispõem de tantos sentidos como a nossa. Algumas
possuem apenas um, ou então dois ou três, sejam eles muito ou pouco
desenvolvidos. A quantidade de sentidos e os níveis de desenvolvimento dos
órgãos sensoriais são fatores que influenciam na percepção do ambiente. Entre
indivíduos da mesma espécie, pequenas alterações genéticas podem fazer com que
um tenha a visão mais apurada, ou a audição menos desenvolvida do que outro,
por exemplo. As pequenas mutações que tornam cada indivíduo único fazem com que
suas respectivas percepções mundanas sejam diferentes. Se tratando de seres
irracionais, a diferença que menciono fica estacionada no ponto de vista
biológico. Mas, ao falarmos de seres detentores de consciência, como o Homem, a
ideia de percepção ultrapassa os limites biológicos e sofre influências
culturais e intelectuais. E é nesse ponto que entra a reflexão: a Terra é a
mesma para todos os seres humanos, mas cada um tem sua própria maneira de
percebê-la, seja por suas diferenças fisiológicas e/ou culturais. Ao olhar a
imagem apresentada no início dessa postagem me deparei com alguns
questionamentos: Será que o meu pensamento em relação a esse planeta é
compartilhado por outros da minha espécie? Ou será que as minhas concepções são
únicas, assim como o DNA presente em cada uma de minhas células? Mostre essa
foto a um cristão, e ele dirá que está vendo uma obra de seu Deus. Aos olhos,
ou melhor, ao cérebro de um geógrafo, passará uma série de informações acerca
da geologia, continentes, fusos horários, e conceitos que dão sentido à sua
profissão e vida. Se você apresentar a mesma imagem a um sociólogo, ele logo
pensará nas diversas culturas e etnias que dominam os continentes e em teorias
que expliquem a forma com que as sociedades se relacionam. Um historiador
pensará nas guerras travadas durante anos, na forma com que a política foi
conduzida e como as civilizações se formaram e mudaram ao longo do tempo. Para
um químico, a Terra é um berço de elementos combinados, moléculas, átomos,
matéria orgânica e inorgânica, um planeta que une condições preciosas para a
permanência da vida. Para um astrônomo ou astrofísico, não passa de mais um
dentre tantos planetas que orbitam uma estrela, dentre tantas estrelas nesta
galáxia, dentre tantas galáxias que existem neste Universo. Para uma criança,
parece uma bola de futebol. Para um sensacionalista, uma montagem feita pela
NASA. Para um biólogo, essa imagem representa a oportunidade que a vida teve de
surgir e tem de evoluir. Para um poeta, o lar dos pensadores. Já para um
matemático, uma grande esfera, fonte de fórmulas, estatísticas. Para um homem
humilde, a prova de que somos pequenos demais. Para mim, uma casa rara, abrigo
abundante de vida, palco das incríveis pressões evolutivas, um pequeno ponto do
Universo compartilhado por tantos seres e que nunca será percebido em sua
totalidade, visto que temos capacidade fisiológica e cognitiva limitada. Pude
concluir, a partir disso, que a etnia que você possui, a tribo da qual você faz
parte, os valores que você adquiriu ao longo da vida e seus conhecimentos a
respeito do mundo à sua volta, tudo isso está incluso em um conjunto de fatores
que fazem de você um ser único, assim como sua molécula de DNA, repleta de
genes que codificam informações a respeito dos seus órgãos sensoriais e do
resto de seu organismo. Portanto, existem dois fatos que tornam um ser humano
singular entre os demais de sua espécie: o primeiro é sua percepção biológica, aquela que depende do seu código genético, dos
seus órgãos sensoriais que, por minimamente diferentes que sejam, geram uma
distinta percepção de mundo em cada indivíduo. As diferentes percepções
biológicas ocorrem entre as demais espécies da Terra, visto que cada uma difere
entre si da sua maneira, assim como cada indivíduo da mesma espécie se distingue
do outro. Esta percepção, portanto, não é exclusividade humana. Mas, ao mesmo
tempo, torna cada ser humano único. O segundo fato é a percepção cultural, isto é, aquela que une seus conhecimentos e
hábitos ao longo da vida, tornando você um ser crítico que busca um significado
próprio para cada objeto a qual é submetido ter contato por meio de sensações. As
percepções culturais, ao contrário das biológicas, são exclusividade humana. Devido
a nossa capacidade cognitiva e autoconsciência, nos distinguimos das outras
espécies por moldar o mundo de acordo com nossas convicções, crenças e
interesses. As duas percepções que citei, biológica e cultural, são de fato o
que nos torna únicos. Entre elas, aparecem semelhanças. Biologicamente, você tem
em comum com outro ser humano aproximadamente 99,9% do seu DNA, isso significa
que há diferenças minúsculas e irrelevantes entre os seus órgãos sensoriais e
os de um chinês a milhas de distância. Culturalmente, as semelhanças aparecem
em menor número se usarmos o exemplo do brasileiro e do chinês. Eles se
distinguem na fala, no modo como se vestem, na maneira de pensar, entre outros
aspectos numerosos. Porém, se compararmos alguém da mesma etnia e da mesma
tribo, como um grupo de físicos brasileiros por exemplo, veremos que suas
percepções mundanas são bem semelhantes. É esse brilhante jogo de percepções culturais
que faz com que mesmo gêmeos monozigóticos, detentores do mesmo genoma, sejam indivíduos
com percepções de mundo diferentes, compartilhando algumas eventuais
semelhanças caso vivam no mesmo ambiente. Nesse momento, peço ao leitor que retorne
a imagem e diga o que ela representa em suas compreensões. Através de uma
imagem como esta, podemos ver o quão particulares somos e como a nossa
personalidade é estampada até no mais simples dos questionamentos. Usufruindo
de uma licença poética da qual não possuo, tomo a liberdade de criar uma
definição metafórica para a nossa espécie: O ser humano é uma singularidade no
meio de um plural sem fim.
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